Os Coadjuvantes do Calvário

Uma das coisas mais interessantes dos Evangelhos é observar que, apesar do protagonismo de Jesus, as pessoas que o encontravam no caminho sempre tinham algo para nos ensinar, tanto para o bem como para o mal. Para o mal, no caso, nos ensina a forma como não devemos agir e, desse modo, também é possível tirar uma mensagem positiva de tais atitudes para nossa vida cotidiana.

É interessante notar que nem todas as pessoas que Jesus encontra no caminho são citadas nos quatro Evangelhos Canônicos e muitas advém dos apócrifos – livros que não foram considerados pela Igreja como de inspiração divina e, por isso, não fazem parte das Escrituras. No entanto, vale ressaltar que os Evangelhos não possuem teor biográfico, mas sim, catequético. Como diz São João, no final de seu Evangelho “Jesus fez muitos outros sinais que não estão escritos neste livro” (Jo 20, 30), o que significa que muitos personagens que ficaram de fora da narrativa bíblica, mas estão nos apócrifos podem (ou não) ter existido.

Independentemente do fato de serem reais ou não, o importante é que eles possuem alguma lição preciosa a passar em seu encontro com o Cristo no caminho do Calvário. Em toda sua caminhada, até mesmo na hora da morte, Jesus deixou sua marca na vida das pessoas. E essas pessoas, santos coadjuvantes, se tornaram anunciadores da Palavra de Deus, pelos seus gestos e atitudes.

Simão de Cirene (Mt 27, 32; Mc 15, 21; Lc 23, 26): O primeiro a ser mencionado, logo após o julgamento de Jesus é Simão, habitante da cidade de Cirene, que voltava do campo, após um dia de trabalho. Ele não é mencionado no Evangelho de João, mas aparece nos três sinóticos, sempre com a mesma narrativa: voltava do campo e foi obrigado pelos soldados a carregar a cruz de Jesus. Interessante que os três Evangelhos não dizem que Jesus carregou a cruz, mas sim, o Cirineu. Só João diz que Jesus levou a própria cruz (Jo 19, 17), o que iria de encontro à frase dita aos discípulos anteriormente: “Quem quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24), algo que Jesus fez em primeiro lugar. E o Cirineu, mesmo involuntariamente, se tornou discípulo, carregando a cruz de Jesus para que ele descansasse. Particularmente, gosto da cena do filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, onde, obrigado pelos soldados, o cirineu grita ao povo ao redor que não tinha nada com o que estava acontecendo. A cruz era uma maldição, carregar a cruz o tornava amaldiçoado. Mas Simão era inocente. E fez questão de deixar isso bem claro aos condenadores. Não sentiu compaixão de Jesus naquele momento inicial, mas fez por obrigação. Quantas vezes nós também não somos cirineus, fazendo atos de bondade porque somos forçados? Seja porque a Igreja manda, seja porque fomos educados pelos pais, seja por determinação das leis. Mas, como diz Jesus, “se alguém der um copo de água que seja a um desses pequeninos porque são meus discípulos, não ficarão sem recompensa” (Mt 10, 42). Nenhum ato de caridade fica sem recompensa. Em seu encontro (forçado) com Jesus, Simão de Cirene descobriu a face da injustiça, com ele próprio e com o condenado. Viu o sofrimento de Jesus e, naquele momento, se tornou discípulo. De um ato obrigado, surgiu um ato de amor. Amigo de verdade ajuda o outro a carregar a cruz, tornar o fardo mais leve, dar um descanso. Temos muito que aprender do Cirineu.

Santas mulheres (Lc 23, 27): Somente o Evangelho de Lucas menciona algumas mulheres de Jerusalém que batiam no peito e choravam. Representam todos aqueles que sentem a dor do outro e se compadecem por ver alguém sofrendo. Quisera todos nós pudéssemos nos colocar no lugar daquele que sofre para entender suas dores. No mundo de hoje, nos esquecemos desse sentimento e deixamos de sentir a dor do outro, preocupados que estamos com nossas próprias dores. Achamos “frescura” quando alguém vem nos contar suas agonias ou, pior, tratamos com indiferença. As mulheres não foram indiferentes ao sofrimento daquele inocente. Elas sabiam que Ele não tinha culpa e não merecia a condenação. Decerto, estiveram com Ele nas suas pregações, ouviram Dele as parábolas do Reino, encheram seus corações de esperança. E choravam por não poder fazer nada. Jesus também não ficou indiferente à dor delas e, mesmo a caminho da morte, foi consolá-las. “Não chorem por mim!”, disse o Mestre. Que encontro! Mulheres sofrendo pela dor do Injustiçado encontram com o Injustiçado que sofre pela dor das mulheres. Estas mulheres anônimas nos ensinam o dom da empatia, algo tão proclamado nos tempos atuais, mas pouco vivido.

Maria, Mãe de Jesus: O encontro de Jesus com sua Santa Mãe não está narrado nos Evangelhos. É dito apenas que Maria estava aos pés da cruz na hora da crucificação (Jo 19, 25-27). Ora, se Maria estava aos pés da cruz, obviamente, também estava acompanhando os passos de Seu Filho no caminho do Calvário. E esse encontro, cheio de dor e de amor, mas sem palavras, nos ensina a importância da presença materna na hora do sofrimento. A mãe sofre junto com o filho, mas sua presença dá força para o filho superar sua dor e sofrimento. Maria sempre esteve junto de Jesus e estaria lá também na hora da morte, por mais que lhe doesse, pois a ligação entre os dois era umbilical. Ao encontrar sua Mãe, Jesus certamente quis aliviar seu sofrimento, Ele que já tinha consolado as santas mulheres. E Ele o fez, um pouco mais tarde: na citação bíblica acima, Jesus deu um presente à sua Mãe: a filiação de toda humanidade. Maria, que acompanhou a via dolorosa de Seu Filho, agora também acompanha a via dolorosa dos homens. Assim como Ela estava lá, fortalecendo Jesus com a Sua presença, Ela também está conosco, nos ajudando a levantar e nos ensinando que Jesus sofreu, mas venceu.

Verônica: A mulher que enxugou o rosto de Jesus durante o caminho do Calvário e em cuja toalha ficou impressa a face do Senhor também não está nos Evangelhos. Acredita-se que nem mesmo o nome de Verônica é verdadeiro, mas uma relação com a expressão em latim “vera icona”, que significa “verdadeira imagem”, em referência ao rosto de Jesus que ficou impresso na toalha. Ela é mencionada no livro apócrifo Atos de Pilatos (Séc. IV), mas sem ter o nome citado. A tradição crê que ela seja a mesma mulher que foi curada por Jesus do fluxo de sangue ao tocar em Seu manto (Lc 8, 43-48). Supondo que isso seja verdade, temos aqui um ato de gratidão: como Jesus a curou antes, ela se viu na obrigação de aliviar um pouco o sofrimento Dele, enxugando-lhe o suor, o sangue, as cuspidas, limpando a poeira daquele rosto. Verônica foi corajosa: furou o cerco dos soldados, correndo o risco de sofrer alguma violência, mas foi prestar seu amor a Jesus com um pequeno gesto, tão insignificante, mas tão cheio de caridade. E nós? Será que temos coragem de enfrentar quem quer que seja para demonstrar nosso amor a Deus? Será que temos a caridade de “enxugar o rosto” daquele que vemos injustiçado? Verdadeira discípula, Verônica “renunciou a si mesma (venceu o medo), tomou sua cruz (enfrentou os soldados) e seguiu Jesus (enxugou-lhe o rosto)”. A existência desta santa mulher pode até ser questionada, mas as lições por ela deixadas devem ecoar em nossas vidas.

Soldados: são inúmeros e incontáveis. Há os que escarnecem da situação, zombam, cospem, tiram as vestes de Jesus e sorteiam entre si, batem os pregos que O prendem à cruz, deram vinagre para matar-Lhe a sede. A impressão que dá é que os soldados estavam se divertindo com a situação. Para eles, era um prazer condenar os criminosos, numa representação de abuso de poder, tão presente até os dias de hoje. Muitos soldados/policiais usam seu poder investido para oprimir, esquecendo-se que estão ali a serviço da população, para dar-lhes segurança. Mas, no meio de tanta impiedade, também há os que têm compaixão: o centurião romano (Mt 27, 34; Mc 15, 39; Lc 23, 47), ao ver tudo o que aconteceu com Jesus, reconheceu que Ele era o Filho de Deus. E, nessa profissão de fé, representa todos aqueles que, no cumprimento de seu dever, são obrigados a fazer aquilo que seus corações não desejam. Militares matam, vão para a guerra, usam de violência… mas o fazem em nome da ordem, da justiça e do bem comum. Na pessoa do centurião convertido, estão aqueles que cumprem o seu dever com honra e, mesmo realizando atos considerados pecado grave (Não Matarás!) o fazem pelo bem maior. É a prova de que, para Deus, nada é impossível e até mesmo do mal, Deus pode tirar o bem. Há muito mais a se falar do centurião – o fato dele ter furado o lado de Jesus e ter se banhado no sangue e na água que de lá saiu, sendo o primeiro a ser participante do batismo de Jesus – mas a discussão seria muito longa. Fiquemos apenas com a lição do cumprimento do dever sem nos deixarmos levar pela arrogância.

Os dois ladrões (Mt 27, 38; Mc 15, 32): Os quatro Evangelhos mencionam esses dois personagens sem nome, cuja tradição os batizou como Dimas (o bom) e Simas (o mau). No entanto, é interessante notar as diferenças entre os textos: em Mateus e Marcos, os dois insultavam Jesus, pedindo que Ele descesse da cruz e os salvasse. Em João, eles apenas são mencionados como crucificados ao lado de Jesus, mas não têm falas. Em Lucas, apenas um é o impenitente. O outro reconhece seus erros e faz um pedido muito humilde a Jesus: “Jesus, lembra-te de mim quando começares a reinar”. Por reconhecer aquele homem como “rei dos judeus” (o motivo de sua condenação), o ladrão ganhou o Paraíso (Lc 23, 39-43). Mais que isso: ganhou o perdão de seus pecados. Costumamos lembrar de Jesus quando o assunto é cruz, mas é importante destacar que Jesus foi “apenas mais um” a ser crucificado naquela época, pois a cruz era uma condenação muito comum. Na entrada das cidades, era normal existirem cruzes espalhadas, como um sinal para que todos vissem e soubessem que, se não andassem na linha, também podiam acabar ali. Era uma forma dos romanos provocarem o medo e o respeito, mantendo, assim, o poder. Para Simas, a cruz foi uma condenação maldita. Embora errado, ainda se fez de vítima e condenou os que o condenavam. Já para Dimas, foi a salvação: reconheceu que merecia o castigo, se humilhou, pediu perdão e ganhou o Céu. Os dois ladrões nos mostram duas atitudes distintas que também nós podemos ter diante da vida: ou podemos passar a vida reclamando e culpando os outros pelos nossos sofrimentos, ou podemos aceitar a situação como uma consequência de nossos próprios erros e confiar na providência de Deus.

Madalena (Mt 27, 56; Mc 15, 40; Lc 23 49; Jo 19, 25): Aquela mulher, libertada por Jesus de sete demônios (sete = número da perfeição, ou seja, era pecadora por completo), também mostrou gratidão, tornando-se discípula fiel até os pés da cruz. Sofreu junto com o Mestre aquela condenação injusta e, por tanto amor, foi a primeira a testemunhar a Ressurreição. Na hora da solidão suprema de Jesus, foi uma das poucas pessoas a ficar com ele aos pés da cruz. Não teve medo de ser discriminada: por ser mulher, já pouco valorizada na época, e, principalmente, por ser pecadora. Para ela, o que importava era estar com Jesus, retribuindo tudo o que Ele fez por ela. E nós, quanto retribuímos as graças que Jesus realiza em nossa vida? Quantas vezes inventamos mil e uma desculpas para não ir à missa? Hoje está chovendo. Estou com sono. Tenho trabalho a fazer. Tem um programa bom na TV. Chegou visita em casa. Nunca temos tempo para Ele, mas queremos que Ele tenha tempo para nós, em nossas necessidades. Madalena e sua disponibilidade apaixonada têm muito a nos ensinar.

João (Jo 19, 26): O discípulo João sempre fala de si mesmo em seu Evangelho como “o discípulo que Jesus amava”, não para diferenciar-se dos demais e se colocar como melhor que os outros, mas para servir de representante de toda humanidade, afinal, Jesus amava todos os seus discípulos. O “discípulo que Jesus amava” sou eu, é você, somos todos que seguimos Seus passos. E João estava aos pés da cruz, no momento em que todos os amados discípulos abandonaram seu Mestre, por pura covardia. Marcos chega a contar que, quando Jesus foi capturado, um dos discípulos se apavorou tanto que largou o próprio lençol com que se cobria e fugiu nu (Mc 14, 52). Mas não João. Ele foi amigo até o fim, a ponto de receber a honra de cuidar da mãe de Jesus, para que não ficasse desamparada, já que era viúva e perdia seu único filho (Jo 19, 27). João não podia fazer muita coisa para ajudar naquele momento, mas fez questão de estar ali para dizer ao Mestre (e à Sua Mãe): “Força, estou contigo!” É fácil ser amigo na hora da alegria, quando tudo está bem. Mas a verdadeira amizade se prova nas horas tristes, quando bate a solidão. São poucos os que ficam aos pés de nossa cruz. Precisamos ser “João” para nossos amigos, mas principalmente, sermos “o discípulo que Jesus amava” e estar sempre com Ele.

Existem outros coadjuvantes – o povo que passava, os doutores da lei, o próprio Pilatos – se formos destrinchar as entrelinhas dos Evangelhos. O importante é saber que, mesmo tendo um papel secundário na narrativa, também estes personagens têm muito a nos dizer, mesmo que não tenham nenhum diálogo. Ler as entrelinhas da Bíblia é um exercício não muito fácil, mas é gratificante e sempre proporciona uma experiência enriquecedora.

Eduardo Marchiori

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